Esta semana comecei a ler o livro "O Rio Triste", de Fernando Namora. Um romance muito belo e realista. Entre muitas passagens que adorei, esta tenho mesmo que partilhar. Vou parti-la em dois para ser mais fácil de ler. Mesmo assim ainda vai ficar com um tamanho considerável, mas garanto-vos que vale a pena.
Transcrição integral:
«Creio que havia uma tipografia ali perto, enquanto estivemos lá dentro ouvia-se o ruído das impressoras. Era a hora do almoço e os tipógrafos mais novos tinham-se juntado ao portão. Galhofavam, riam, jogavam com uma bola de borracha. Quando me viram aparecer, investigaram-me traço por traço. Bem o senti. Mas fingi não dar por nada. Tenho um rosto altivo, talvez mesmo desdenhoso, as pessoas não me olham duas vezes. E o meu andar, que dizem ser de graça, ajuda a essa altivez. Sou uma senhora. Entre onde entrar. E eu entro em quase todo o lado. O quase que me falta é uma das minhas tentações. Secretas. Os segredos do meu mundo inventado.
Saí, pois, subindo a ladeira acima. Talvez de cabeça baixa. Mas mesmo de cabeça baixa, sou a tal pessoa que faz vergar o olhar dos outros. Mal eles sabem da fragilidade que me vai por dentro. Sobretudo quando me mostro distanciada, um tanto fria, mirando as pessoas até lhes arrombar as fechaduras e fazendo crer que não valem muito para mim. Subi a ladeira e vim ter ao largo. Antiquários, táxis, uma igreja. A pastelaria, essa onde entrei, fica numa das esquinas. Podia ser uma taberna, tem coisas sujas pelo chão. E os móveis cheiram, um cheiro que se mistura ao da comida e ao das pessoas suadas. Não gosto de pessoas que suam.
Que iria eu fazer depois daquilo? Ou melhor: que gostaria eu de fazer depois daquilo? Senti-me eu própria um pouco irreal, talvez, nem feliz nem arrependida, de certeza confusa, num mundo à parte daqueles jovens que corriam em grupo, do vendedor de cautelas, do casal de cegos que se preparava para atravessar a rua, exactamente na passagem dos peões – como teriam acertado com tal rigor? Entrei na pastelaria. Sentei-me. É bom sentarmo-nos num lugar quando não sabemos para onde ir, ou quando, embora saibamos, não nos apetece ir para lá. O empregado aproxima-se, está direito ao pé de mim, enquanto roda, enfastiado, e aguarda que eu fale. Mas não falo, sinto-me ainda numa saborosa vertigem, amo-o tanto, eu sei que o amo, amo-te Rodrigo, mas, não sei porquê, o que sucedeu parece que foi estranho a esse amor, ou então é desta enleadora vertigem, daqui a pouco já verei as coisas com mais clareza, eu não falo, absorta, é como se estivesse ainda num outro lugar, ali é apenas o meu corpo magoado, e ele, o empregado, pergunta:”Que deseja?” Que desejo? – repito a mim própria, como num eco, fazendo o possível por estar realmente ali. Que posso eu desejar, além de estar sentada naquela cadeira, as mãos metidas nos bolsos, roendo o lábio que ele beijou, sugou, mordeu até me fazer sentir, toda eu, uma polpa inchada e quente, deliberadamente dorida? Que posso eu desejar, Teresa? Voltar para donde acabas de vir, ainda lá o encontrarias, é, a bem dizer, a casa dele, fazer amor o dia inteiro, a semana inteira, a vida toda? Fazer amor com este sentimento de culpa – de que és, afinal, culpada? Que desejas, Teresa: nunca lá mais tornar? Responde. O empregado olha-te, está à espera, e tu olha-lo também, e como ele esperando, até que o pobre insinua: “É hora de almoço. Servimos bifes, meios bifes e… um quarto de bife.” O que ele hesitou para dizer “um quarto de bife”! No mundo há de tudo, de facto. Há a Teresa, que sou eu, há a casa de onde venho, a casa dos tios do Rodrigo (conheci-os protocolarmente há três semanas, mais dia menos dia), há pastelarias, há barcos lindos, lindos, que atravessam o rio escoltados por gaivotas, e há quartos de bife. As pessoas que organizam estas coisas nem se ficaram por meio bife. Pensaram em tudo, naqueles que não têm apetite nem dinheiro que cheguem para metade de um bife. Talvez eu também me sinta em menos metade de mim própria. O empregado percebeu logo isso, e daí ter acrescentado: ”Talvez um quarto de bife para a senhora.” Um quarto de bife, um quarto (metade de metade) seja do que for. A dose de nada. A dose dos famintos que nem a sua fome podem matar. E a Teresa concordou: “Está bem, um quarto de bife.”
E pus-me a pensar: que será verdadeiramente, assim à vista, um quarto de bife? Um quarto (metade de metade) pode ser pouco e pode ser tanto. E pode ser várias coisas. Pode ser um quarto para se dormir, para fazer amor. “Este quarto é de quem Rodrigo?” – “Meu, querida, o dos tios é o outro a seguir.” Um quarto forrado de papel dourado. Oiro velho, baço, nobre. Velho de quê? Do tempo. Das mãos do tempo, que também matizam e arrefecem, põem nódoas, dão vida e dão morte. Estava ela no quarto, toda ela de Rodrigo, e nem assim deixara de pensar no dourado do papel. O dourado velho já não agride. É mais caricioso, mais suave, não magoa os olhos que lhe procuram o apagado brilho.
Aqui está o empregado com o quarto de bife. É muito pouco, realmente, um quarto de bife. Uma miniatura de carne afogada num estendal de batatas fritas. Agora fico a saber a que cheiram os móveis, a que cheirava a cadeira e esta mesa: a batatas fritas. A carne, de tão pouca, nem chega a impregnar as coisas do seu odor. Mas, afinal, como é saborosa. Isto é: uma comida, digamos um bife, não sabe nem mal pela quantidade. É por outras coisas. Este soube-me a manjar de deuses. Comi-o num instante, com tal sofreguidão, com tal deleite, que o empregado, atento, voltou a aproximar-se: ”Talvez a senhora deseje outro quarto de bife.” E eu respondi logo, creio que a minha voz também se fizera cúmplice: “Boa ideia. Talvez outro quarto de bife.”»
Valete Frates
P.S.: Tendo que dactilografar tudo, este texto ganha uma dimensão ainda maior para mim.
Transcrição integral:
«Creio que havia uma tipografia ali perto, enquanto estivemos lá dentro ouvia-se o ruído das impressoras. Era a hora do almoço e os tipógrafos mais novos tinham-se juntado ao portão. Galhofavam, riam, jogavam com uma bola de borracha. Quando me viram aparecer, investigaram-me traço por traço. Bem o senti. Mas fingi não dar por nada. Tenho um rosto altivo, talvez mesmo desdenhoso, as pessoas não me olham duas vezes. E o meu andar, que dizem ser de graça, ajuda a essa altivez. Sou uma senhora. Entre onde entrar. E eu entro em quase todo o lado. O quase que me falta é uma das minhas tentações. Secretas. Os segredos do meu mundo inventado.
Saí, pois, subindo a ladeira acima. Talvez de cabeça baixa. Mas mesmo de cabeça baixa, sou a tal pessoa que faz vergar o olhar dos outros. Mal eles sabem da fragilidade que me vai por dentro. Sobretudo quando me mostro distanciada, um tanto fria, mirando as pessoas até lhes arrombar as fechaduras e fazendo crer que não valem muito para mim. Subi a ladeira e vim ter ao largo. Antiquários, táxis, uma igreja. A pastelaria, essa onde entrei, fica numa das esquinas. Podia ser uma taberna, tem coisas sujas pelo chão. E os móveis cheiram, um cheiro que se mistura ao da comida e ao das pessoas suadas. Não gosto de pessoas que suam.
Que iria eu fazer depois daquilo? Ou melhor: que gostaria eu de fazer depois daquilo? Senti-me eu própria um pouco irreal, talvez, nem feliz nem arrependida, de certeza confusa, num mundo à parte daqueles jovens que corriam em grupo, do vendedor de cautelas, do casal de cegos que se preparava para atravessar a rua, exactamente na passagem dos peões – como teriam acertado com tal rigor? Entrei na pastelaria. Sentei-me. É bom sentarmo-nos num lugar quando não sabemos para onde ir, ou quando, embora saibamos, não nos apetece ir para lá. O empregado aproxima-se, está direito ao pé de mim, enquanto roda, enfastiado, e aguarda que eu fale. Mas não falo, sinto-me ainda numa saborosa vertigem, amo-o tanto, eu sei que o amo, amo-te Rodrigo, mas, não sei porquê, o que sucedeu parece que foi estranho a esse amor, ou então é desta enleadora vertigem, daqui a pouco já verei as coisas com mais clareza, eu não falo, absorta, é como se estivesse ainda num outro lugar, ali é apenas o meu corpo magoado, e ele, o empregado, pergunta:”Que deseja?” Que desejo? – repito a mim própria, como num eco, fazendo o possível por estar realmente ali. Que posso eu desejar, além de estar sentada naquela cadeira, as mãos metidas nos bolsos, roendo o lábio que ele beijou, sugou, mordeu até me fazer sentir, toda eu, uma polpa inchada e quente, deliberadamente dorida? Que posso eu desejar, Teresa? Voltar para donde acabas de vir, ainda lá o encontrarias, é, a bem dizer, a casa dele, fazer amor o dia inteiro, a semana inteira, a vida toda? Fazer amor com este sentimento de culpa – de que és, afinal, culpada? Que desejas, Teresa: nunca lá mais tornar? Responde. O empregado olha-te, está à espera, e tu olha-lo também, e como ele esperando, até que o pobre insinua: “É hora de almoço. Servimos bifes, meios bifes e… um quarto de bife.” O que ele hesitou para dizer “um quarto de bife”! No mundo há de tudo, de facto. Há a Teresa, que sou eu, há a casa de onde venho, a casa dos tios do Rodrigo (conheci-os protocolarmente há três semanas, mais dia menos dia), há pastelarias, há barcos lindos, lindos, que atravessam o rio escoltados por gaivotas, e há quartos de bife. As pessoas que organizam estas coisas nem se ficaram por meio bife. Pensaram em tudo, naqueles que não têm apetite nem dinheiro que cheguem para metade de um bife. Talvez eu também me sinta em menos metade de mim própria. O empregado percebeu logo isso, e daí ter acrescentado: ”Talvez um quarto de bife para a senhora.” Um quarto de bife, um quarto (metade de metade) seja do que for. A dose de nada. A dose dos famintos que nem a sua fome podem matar. E a Teresa concordou: “Está bem, um quarto de bife.”
E pus-me a pensar: que será verdadeiramente, assim à vista, um quarto de bife? Um quarto (metade de metade) pode ser pouco e pode ser tanto. E pode ser várias coisas. Pode ser um quarto para se dormir, para fazer amor. “Este quarto é de quem Rodrigo?” – “Meu, querida, o dos tios é o outro a seguir.” Um quarto forrado de papel dourado. Oiro velho, baço, nobre. Velho de quê? Do tempo. Das mãos do tempo, que também matizam e arrefecem, põem nódoas, dão vida e dão morte. Estava ela no quarto, toda ela de Rodrigo, e nem assim deixara de pensar no dourado do papel. O dourado velho já não agride. É mais caricioso, mais suave, não magoa os olhos que lhe procuram o apagado brilho.
Aqui está o empregado com o quarto de bife. É muito pouco, realmente, um quarto de bife. Uma miniatura de carne afogada num estendal de batatas fritas. Agora fico a saber a que cheiram os móveis, a que cheirava a cadeira e esta mesa: a batatas fritas. A carne, de tão pouca, nem chega a impregnar as coisas do seu odor. Mas, afinal, como é saborosa. Isto é: uma comida, digamos um bife, não sabe nem mal pela quantidade. É por outras coisas. Este soube-me a manjar de deuses. Comi-o num instante, com tal sofreguidão, com tal deleite, que o empregado, atento, voltou a aproximar-se: ”Talvez a senhora deseje outro quarto de bife.” E eu respondi logo, creio que a minha voz também se fizera cúmplice: “Boa ideia. Talvez outro quarto de bife.”»
Valete Frates
P.S.: Tendo que dactilografar tudo, este texto ganha uma dimensão ainda maior para mim.
Sem comentários:
Enviar um comentário