quarta-feira, maio 14, 2008

Dois quartos de bife (II)

Transcrição Integral:
«Um quarto mais um quarto faz metade. Metade de quê? De um bife. Por exemplo, de um bife. Mas volto com a teima: que poderá ser um quarto do que for, incluindo um pedacinho de carne sob uma cascata de batatas fritas? Nada mais vago do que dizer que uma coisa está em metade, está num terço, num quinto – que é isso de uma coisa inteira somando quatro quartos? De qualquer modo, o que posso afirmar é que este segundo quarto foi bem maior que o primeiro. O empregado, decerto, engraçou comigo. Ou lá achou que eu preciso do conforto de um quarto de bife mais alentado. É porque simpatizou comigo, apetece-me dizer-lhe (embora não lho diga nem possa dizer): “sabe o que sinto? Esta manhã, enquanto você (deverei tratá-lo por você ou por senhor – por tu, nunca) servia quartos de bife, ou velhotes reformados que começaram a ajeitar o casaco ao pescoço dois meses antes do frio chegar, esta manhã aconteceu a minha noite de núpcias, a minha e creio a dele. Há um pedaço, eu estava tonta, insegura, talvez decepcionada (mas não, mas não), agora, porém, que comi o quarto de bife começo a recompor-me, recomeço a ser eu.”
É manhã. Estou a falar de noite, apenas porque se convencionou que essas coisas devem passar-se durante a noite, mas sei bem que é de manhã. Não só porque o relógio mo confirma e as pessoas fazem o que costumam fazer de nas horas da manhã. É manhã porque ontem uma chuva de Verão, com relâmpagos e tudo, varreu o céu todo, de cabo a rabo, e ficou à espera que amanhecesse para se mirar neste intenso azul. Os meus olhos encheram-se dele, absorveram-no, se calhar até azuis ficaram também.
Estava uma bonita manhã, reparaste, Rodrigo? Quando desceste a ladeira, na tua cabeça haveria um cantinho disponível para o céu lavado? A minha dúvida é porque sei que não a desceste a pé como eu. Eu vi, pude entregar-me à beleza da manhã. E foi ainda repassada da frescura da chuva que já não era chuva, tendo nos olhos o azul sem nuvens desta manhã, que te beijei quando abriste a porta. Tinha chuva o meu beijo. E tinha o esplendor da luz que vem depois da chuva – sentiste, Rodrigo? Pudeste senti-lo enquanto, impaciente, me sorvias a boca?
Agora me lembro que talvez o empregado nem me tivesse proposto mais um quarto de bife. Talvez mo tivesse trazido sem eu anda dizer, apenas porque percebera em mim que eu gostaria de repetir o quarto de bife e que, de tão alheada, não achava palavras para falar. E que vou eu fazer agora depois do segundo quarto de bife? Que vou eu fazer depois daquilo? Amo-te, hei-de dizer-te mil vezes que te amo, mesmo que os lábios fiquem fechados. As horas que tenho vivido contigo nunca mais as poderei apagar. Só por elas valeu a pena conhecer-te, valeu a pena amar-te – e, no entanto, ainda não sei quem és. Mas amo-te meu desconhecido. Que vou eu fazer de mim depois desta manhã em que nos devorámos, em que amámos e sofremos como se não houvesse mais nenhuma oportunidade para o amor e o sofrimento, em que quisemos reter todos os minutos dentro de nós? Deixaste-me desamparada. Vazia, não – inquieta, insegura. É que, de súbito, o teu rosto desfigurou-se. Senti uma presença sufocante entre nós. Tenho-te de to dizer. De súbito, os teus dedos ternos, mas já ausentes, acarinharam embaraçadamente o meu corpo, estavam a despedir-se de mim e ansiosos de que a despedida se apressasse. De súbito, aquelas palavras:”Bem, Teresa, tenho de ir ao emprego. Arranjei uma desculpa para estas horas, mas estão à minha espera antes do almoço. Encontramo-nos à tarde.” Eu atónita, gelada. Mas tendendo que não desses por isso – terei conseguido? Era a nossa manhã, a nossa noite, e tu pensavas no emprego, teceste uma historieta para que a tua ausência fosse contabilizada nos interesses da empresa. Acrescentaste mais não sei quê, não ouvi o resto. Suponho até que te fiz uma pergunta e que as tuas palavras deviam ser a resposta a essa pergunta, que era desse teu emprego que falavas, que estavas a ser sincero. Que me punhas em evidência a realidade, tua e minha: essa empresa que controla as tuas horas, que talvez seja o esteio da tua vida, que, esta manhã (tão extraordinária e tão banal), começámos a aprender juntos o que vai ser o nosso quotidiano. A tua sinceridade (desastrada? pueril?) confiou-me tudo isso, revelou-mo. Não tenho nada a acusar-te. Essa nossa vida será, porventura, a vida de toda a gente. Mas eu sempre esperei mais – tu próprio estou certa, esperas, mais. O quê, não saberei dizer. Talvez precise daquilo que não me podes dar.
Depois de nos termos conhecido, o entardecer viera de repente, quantas vezes te espevitei, intervindo insidiosa ou declaradamente nas tuas decisões, enquanto noutras fases me punha de lado, como desinteressada, como se já estivesse farta de ti, deixando-te livre para seguires, sem apoio nem coacção, o curso impetuoso e ao mesmo tempo incoerente e frouxo do teu dia-a-dia. Eu própria to confessei, quando tentavas interpretar os meus silêncios e os meus distanciamentos:”Não repares, Rodrigo. Apenas quis ver até onde ias sozinho.” Sempre esperei, para que negá-lo? E é por isso que às vezes me agarro com ambas as mãos a coisas insignificantes como estas: a solicitude do empregado da pastelaria, o sabor a pouco de um delicioso quarto de bife.»

Valete Frates

P.S.: A leitura integral do livro recomenda-se.


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